13 ago O que acontece no cérebro durante a meditação
O francês Matthieu Ricard estudava biologia molecular quando viajou para a Índia, em 1967. Por lá, tomou contato com os ensinamentos de líderes espirituais tibetanos, e algo despertou no seu cérebro. Ricard voltou para a França e concluiu os estudos. Chegou a tirar Ph.D. em genética celular e tinha uma carreira promissora na ciência. Mas, em 1972, aos 26 anos, decidiu voar de novo para a região do Himalaia para aprofundar o aprendizado nas filosofias orientais. E vive lá até hoje.
O cientista francês se tornou um monge budista famoso e hoje transita em eventos como o Fórum Econômico de Davos, dá palestras no TED e lança best-sellers traduzidos ao redor do mundo – ele seria, inclusive, um dos confidentes do Dalai Lama. A fama ganhou um empurrão na década de 2000, quando pesquisadores da Universidade de Wisconsin, nos EUA, convidaram Ricard para participar uma série de pesquisas sobre seu próprio cérebro.
A equipe liderada pelo neurocientista Richard Davidson colocou 256 sensores na cabeça do monge para medir sua atividade neural com um aparelho de ressonância magnética. Durante o exame, o monge fazia sessões de meditação de compaixão, na qual o praticante deseja o bem a outras pessoas, que duravam três horas.
O cérebro produziu uma quantidade anormal de ondas gama, oscilações eletromagnéticas que surgem quando neurônios trabalham em sincronia.
Comparado a voluntários que não tinham a mesma experiência no método, o cérebro de Ricard produziu uma quantidade anormal de ondas gama, oscilações eletromagnéticas que surgem quando neurônios trabalham em sincronia. Pesquisadores acreditam que essas ondas estão ligadas à percepção de consciência, atenção, aprendizado e memória. As medições do cérebro de Ricard foram recordistas: nunca haviam sido registradas ondas gama tão fortes na literatura neurocientífica.
Davidson e seus colegas também detectaram uma forte atividade no lobo frontal esquerdo. A agitação neural nesse determinado ponto do cérebro do monge, de acordo com os pesquisadores, permitiria a Ricard uma condição privilegiada de vida: ele se sente mais feliz do que a média da humanidade e pensa menos em desgraças. Pelo conjunto da obra, o monge começou a ser perfilado na imprensa internacional nos idos de 2007, com a alcunha de O Homem Mais Feliz da Terra.
A imprensa adora rótulos e não há como atestar, de fato, o título de Ricard. Mas, seja como for, o monge passou anos estudando as raízes da felicidade e conquistou espaço como um dos mais respeitados porta-vozes do tema no mundo. Para ele, a meditação é uma ferramenta útil para a conquista do contentamento individual. A pessoa fica tão de bem consigo mesma que emana alegria e compaixão.
Em 2013, a pesquisadora Gaëlle Desbordes, de Harvard, em parceria com cientistas da Universidade de Northeastern, divulgou o primeiro estudo a constatar isso na prática. No experimento, os voluntários meditaram por oito semanas. Gaëlle estava interessada em descobrir se eles haviam se tornado pessoas melhores depois do período. Para avaliar isso de forma isenta, ela contratou pesquisadores disfarçados para seguir os participantes em vários momentos do dia.
A ideia era flagrar alguns episódios nos quais fosse possível constatar se houve mesmo uma mudança de hábitos espontânea. Comparado a um grupo que não meditou, a turma da meditação passou a praticar mais atos de bondade. Como? No ônibus, cediam o lugar aos mais velhos e ofereciam ajuda a estranhos para atravessar a rua ou segurar compras.
Para Ricard, a meditação é um treino, e a felicidade, o resultado sistemático de bons pensamentos, princípios e desejos. Só é possível atingir a excelência com muito exercício, paciência e perseverança. Como o monge vem praticando há muitas décadas, os exercícios mudaram a sua mente. Essa transformação está no alcance de todos, segundo pesquisas científicas – mas no médio e longo prazo.
Uma delas foi realizada aqui no Brasil, no Hospital Israelita Albert Einstein, de São Paulo. Os cientistas fizeram exames de neuroimagem em 39 voluntários. Aqueles que eram meditadores com pelo menos três anos de experiência eram também donos de um cérebro mais eficiente em tarefas que exigem atenção. Durante testes cognitivos, os meditadores acessam um número menor de áreas cerebrais para fazer a mesma atividade dos que nunca entoaram um “ohm” na vida, o que indica que eles eram melhores em se concentrar. A pesquisa também mostrou que existe uma diferença física na cabeça dos meditadores experientes: havia mais massa cinzenta em áreas corticais, relacionadas à atenção e ao raciocínio.
Essa eficiência é semelhante às habilidades cerebrais dos músicos, que precisam sincronizar a mente, a voz e os dedos para cantar e tocar violão, por exemplo. Músicos profissionais automatizam uma tarefa altamente complexa e parecem nem pensar mais na performance, uma perícia que fascina multidões. Nos meditadores, acontece algo equivalente na busca pelo foco.
Quanto mais, melhor
Mas o benefício da meditação vai muito além da agilidade mental. Com o avançar da idade, a camada mais superficial do nosso cérebro, o córtex pré-frontal, responsável pelo raciocínio, atenção e lógica, começa a diminuir. Outras áreas como a ínsula, o núcleo duro das emoções, e o famoso hipocampo, guardião da memória, também. Continuar ativo intelectualmente pode até atenuar esse impacto da velhice, mas até pouco tempo atrás os cientistas desconheciam remédios ou exercícios que realmente reduzissem o efeito do tempo na mente. Até que um experimento feito na Universidade Harvard trouxe a meditação de volta aos holofotes.
Divulgada em 2014, a pesquisa, capitaneada pela neurocientista Sara Lazar, mostrou que o mindfulness funciona como um antídoto contra o envelhecimento cognitivo. A equipe de Sara fez exames de neuroimagem em meditadores adultos de meia-idade e verificou que eles tinham uma capacidade cognitiva igual à de jovens de 25 anos. Os praticantes tinham mais neurônios. É um achado exuberante. Isso porque o encolhimento do hipocampo, por exemplo, está associado a várias doenças, desde a depressão até demências.
Um dos primeiros cientistas a se interessar pelos efeitos da meditação na saúde, o norte-americano Andrew Newberg começou a investigar a prática justamente atrás de um método contra a deterioração mental. Para testar o efeito das técnicas, o pesquisador recomendou a meditação de Kirtan Kriya a um de seus pacientes que chegou ao seu consultório reclamando que a cabeça havia começado a falhar. Na Kirtan Kriya, o indivíduo tem de repetir o mantra saa, taa, naa, maa, que pode ser pronunciado em voz alta, em silêncio ou incorporado a uma música. As sílabas se referem aos sons considerados primordiais para os hindus. Saa é infinito; taa, vida; naa, morte; e maa, renascimento, em sânscrito. Ao mesmo tempo que entoa o mantra, é preciso fazer movimentos ritmados com os dedos. Na sílaba saa, deve-se tocar o dedo indicador no polegar; em ta, o dedo do meio; em naa, o dedo anelar; e em maa, o dedo mínimo no polegar, e repetir a operação por até 12 minutos, todos os dias, se possível. O praticante deve pressionar as pontas dos dedos umas contra as outras ao ponto de deixá-las levemente esbranquiçadas. Esse tipo de gesto é chamado de mudras na tradição asiática.
Durante dois meses, o paciente de Newberg repetiu diariamente, durante 12 minutos, o mantra saa, taa, naa, maa. Depois desse período, voltou ao consultório do médico sentindo-se “outro homem”, conforme seu relato pessoal. É claro que a percepção do próprio paciente é importante, mas Newberg o submeteu a uma nova ressonância para ver se havia uma mudança cerebral que justificasse a euforia toda. O exame comprovou que houve de fato uma alteração detectável. As imagens mostraram que o córtex pré-frontal estava bem mais ativo do que antes.
Barato careta
Newberg sabia o que estava fazendo quando prescreveu meditação a seu paciente. Em 1999, o pesquisador havia feito um experimento inovador para a época. Submeteu monges e freiras a um exame chamado de tomografia computadorizada por emissão de fóton único, ou SPECT. Nesse tipo de teste, o voluntário recebe a injeção de uma substância radioativa que colore as áreas cerebrais conforme a intensidade do fluxo sanguíneo. Mais sangue circulando em determinada região significa uma atividade mais intensa.
Quando estavam entrando em estado contemplativo, os monges tinham de puxar uma cordinha. Esse era o aviso para que o cientista injetasse a substância. Um minuto depois, as imagens cerebrais apareciam coloridas no monitor. O lobo frontal, ligado à concentração, ficou vermelho brilhante, o que indicava uma intensa atividade. A meditação requer foco e concentração – ao contrário do que muitos pensam, é uma atividade mental intensa e não um relaxamento.
Por outro lado, o lobo parietal ficou azul, com a atividade reduzida. Essa área do cérebro é o nosso GPS pessoal, ou seja, localiza nosso corpo no espaço. Sem essa percepção, perdemos as coordenadas básicas de onde estamos. Na leitura de Newberg, a redução de atividade nessa área indicava que meditadores experientes perdem a noção de individualidade, do espaço e do tempo. “Você se torna um único ser com Deus ou com o Universo”, disse Newberg. Trata-se, na visão do cientista, um estado puro de autotranscendência.
Essa pode ser uma das explicações para a fama de Matthieu Ricard como O Homem Mais Feliz do Mundo – a meditação é, essencialmente, um barato sem drogas ou efeitos colaterais.
Fonte: Super Interessante